O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DOS REGISTROS E A AQUISIÇÃO IMOBILIÁRIA POR LEILÃO

DEBATE IMOBILIÁRIO | IBRADIM

EDIÇÃO Nº 15 NOVEMBRO 2023

É bastante comum encontrarmos temas em que visualizamos tratativas de negócios imobiliários que buscam pelo título de propriedade e o direito das partes neles envolvidas.

Aqui, a proposta é pensarmos na lacuna existente entre o princípio da continuidade registral e a natureza jurídica do título apresentado na aquisição de imóvel em leilão, qual seja, a carta de arrematação, por vezes entendida como um modo aquisitivo originário e por vezes, como derivada.

Para isso, iniciemos com uma breve análise conceitual do Registro de Imóveis, que é o ambiente em que o título será tratado e analisado.

O Registro de Imóveis é a instituição com poderes legais para alcançar a publicidade, a segurança jurídica e ainda a eficácia de fatos jurídicos que recaiam sobre bens imóveis. Tais fatos podem ser a respeito dos sujeitos que figuram nos registros ou, ainda, dos direitos reais da propriedade imobiliária, sempre que assim sejam exigidos.

De acordo com o artigo 167 da Lei 6.015/1973, no Registro de Imóveis, além da matrícula, será feito o registro da arrematação e da adjudicação em hasta pública, previstos nos tipos de documentos hábeis, uma vez que nem todos os documentos estarão legitimados, conforme mencionado no artigo 221 do mesmo dispositivo legal.

Dessa maneira, o sistema de registro de imóveis brasileiro é resguardado por alguns princípios para a finalidade de dar publicidade, notoriedade e conhecimento acerca de um determinado imóvel a quem possa interessar.

O princípio da continuidade registral ou do trato sucessivo, nosso foco, tem, então, como preceito, garantir que nenhum título terá ingresso no registro de imóveis sem que nele exista o registro da sua transmissão anterior. Ou, bem dizendo, “O princípio da continuidade, que se apoia no da especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidades à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam uma das outras, asseguram sempre preexistência de imóvel no patrimônio do transferente”1.

Esse princípio tem sua previsão legal no artigo 195 da Lei 6.015/73, ao citar que “Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro”.

É relevante para o nosso tema central destacar que esse princípio não se aplicaria para casos de aquisições imobiliárias originárias, sob o fundamento expresso pelo próprio nome, em que se entende que são títulos iniciais.

É por essa razão que precisamos, brevemente, entender que, em razão da omissão quanto à natureza jurídica do leilão judicial de imóvel, ele se torna o ponto de tormenta no momento do registro desses imóveis, porque existe um grande debate quanto à sua forma de aquisição, se originária ou derivada.

Pois bem, diferente de uma compra e venda imobiliária na qual é legalmente especificado o seu procedimento para fins de registro, no leilão de imóveis, a escritura é suprimida pela carta de arrematação expedida pelo juízo que leiloou o bem. E somado ao fato de que “Cerca de 60% dos imóveis no Brasil apresentam algum tipo de irregularidade. A mais comum é a falta de escritura, segundo o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional”2, estaríamos, ao que parece, diante de uma grande proporção de imóveis penhorados sem a continuidade registral da parte que está sendo executada.

Bem assim dizendo, é frequente identificar que a parte a qual está sendo executada não é a mesma parte constante no título de registro imobiliário. Perfeitamente possível imaginar, por exemplo, nas execuções de débitos condominiais.

E de que modo isso impacta? Considerando o princípio da continuidade registral, a inexistência de definição quanto à natureza jurídica do leilão judicial de imóveis, a satisfação do crédito que a arrematação exitosa propõe para a execução judicial e, por fim, a instabilidade do registro da carta de arrematação acabam por gerar um receio no procedimento de leilão judicial de imóveis, no tocante à possibilidade de registro imobiliário, porque, por muitas vezes, se torna um incansável e custoso trabalho para regularizar as transferências anteriores.

Para que se torne claro o quão imprevisível pode ser o entendimento do registro da carta de arrematação na serventia, vejamos trecho de recente decisão: “1. Independentemente de se tratar de aquisição originária ou derivada, incide o ITBI na transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição (...)”.

Já em outro entendimento: “Registro de carta de adjudicação. Modo derivado de aquisição da propriedade. Modificação do posicionamento anterior do Conselho Superior da Magistratura. Análise da natureza jurídica do ato de adjudicação. Fundamentos que não afastam a natureza derivada da transmissão coativa. Óbices ao registro mantidos[...] Recurso não provido”.

Esse é o foco do nosso tema, compreender que entre o ato de arrematação judicial do imóvel e o seu registro há grande discordância de entendimentos. Isso, por muitas vezes, torna insegura, custosa e, agravante maior, gera uma grande probabilidade de o imóvel leiloado se manter irregular, já que, para fins de registrar a propriedade, o arrematante passa a se tornar o responsável por comprovar e regularizar todas as transmissões imobiliárias anteriores.

Pois bem. Como é possível que um terceiro interessado na arrematação judicial de um bem tome conhecimento de todos os negócios imobiliários subsequentes ao constante no título? A questão é: ao imaginar que alguma transferência daquele imóvel, objeto da arrematação, possa ter ocorrido por uma cessão hereditária, a qual sabemos ocorre aos montes sem a sua publicidade, e a grande manobra de que necessitará o arrematante para formalizar essa transmissão e tão somente em ato seguinte finalizar a que lhe é garantida, por muitas vezes é preferível desistir do lance.

Diante de tal cenário, é, no mínimo, necessário que se faça uma análise prévia com prudência: do edital, da matrícula, dos gravames e ônus existentes, das partes envolvidas no processo, da ciência de credores no processo judicial, de cláusulas impeditivas de usar, fruir e gozar do bem pelo arrematante, para que, através desse estudo, seja possível identificar qual será o custo, o tempo e a possibilidade de registro do imóvel.

Como exposto até aqui, parece que a necessidade de comprovação, pelo arrematante, perante a serventia, de todas as transmissões que ocorreram anteriormente não é a melhor solução para tornar o ato de arrematação judicial de um imóvel eficaz, uma vez que o arrematante figura na execução como um “agente” capaz de solucionar a satisfação do crédito perseguido.

Dessa maneira, firmamo-nos no posicionamento quanto à necessidade de alguns reajustes processuais para a progressão da segurança jurídica na arrematação judicial, especificamente quanto ao registro de imóveis, pela nítida compreensão de duas razões: não há relação contratual, negocial ou jurídica entre o arrematante e o proprietário anterior; e inexiste transmissão voluntária do direito de propriedade, já que o ato de arrematação judicial conclui, por vezes, exaustivo ciclo de satisfação de crédito, sendo assim um excelente ato de impulsionamento de negócios processuais e imobiliários.